segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Momentos de cão sarnento - I

Momentos de cão sarnento - I
Enéias Teles Borges

Ele veio para São Paulo. O objetivo era estudar. Pagaria os estudos com o trabalho no colégio interno. No dia 11 de dezembro de 1979 ele chegou à portaria da instituição e foi bem recebido. Tinha 17 anos e enorme expectativa quanto ao futuro: como aluno, como operário e quem sabe até como pastor. Daquele dia em diante ele se empenhou muito para merecer a oportunidade restrita a poucos.

No trabalho dedicou-se tanto que foi considerado como um dos raros que davam lucro à fábrica. Trabalhou no setor de torrefação de cevada e por conta disso carrega até hoje um pigarro. Trabalhava com disposição dobrada nos finais de semana. Começava a militar do por de sol do sábado até a tardezinha do domingo. Sentia sono, mas também se sentia satisfeito por fazer o melhor. Era tudo muito cansativo, mas realizante. A noite inteira na torrefação de cevada e no domingo, depois do almoço, trabalhava na padaria até o final das atividades. Essa foi a forma encontrada para acumular algumas horas extras. As receberia em dinheiro ou as usaria para visitar os familiares...

Nos estudo ia muito bem. Chegou para cursar o segundo ano de contabilidade e a despeito da enorme luta destacou-se. No terceiro bimestre existiam apenas três alunos no segundo grau com cem por cento de notas azuis. Ele era um. No final daquele ano ele foi o único a concluir o curso com notas altas e nenhuma vermelha. Ganhou um apelido na escola: “o garoto das notas azuis”.

Foi promovido para o setor administrativo. Não foi conduzido por métodos políticos. Fez parte de um grupo de alunos indicados pela professora de contabilidade. No teste foi aprovado e o único a seguir para aquele setor. Destacou-se ocupando cargos antes exercidos apenas por funcionários. No vestibular para a faculdade de teologia passou com facilidade e ingressou no curso. Até o segundo ano trabalhou na escola e pagou os estudos com o trabalho: todos os dias, à tarde, e no domingo era o dia inteiro. Bom conceito no trabalho, excelentes notas na faculdade. Era freqüentador assíduo da biblioteca, à noite e da sala de oração, antes de dormir.

A partir do terceiro ano viajou (nas férias) para vender livros e até que se deu bem. Na cidade mineira de Itabira conseguiu valor suficiente para pagar o semestre à vista e ainda guardar um pouco. No meio do ano foi mais longe: Altamira no Pará. Deu-se muito bem e principalmente quando palestrou e vendeu livros no Batalhão de Infantaria da Selva daquela região. Pagou a escola à vista e guardou valores para o último ano. Nem precisaria vender livros no ano seguinte. Mesmo assim retornou a Itabira, Minas Gerais e vendeu produtos alimentícios na cidade. Ministrou palestras para os funcionários da Companhia Vale do Rio Doce. Pagar a escola virou moleza... Foi possível até comprar uma casinha simples para seus pais.

Formou-se e recebeu quatro convites para trabalhar, sendo três para pastorear igrejas e um na área administrativa. Convites da Bahia, de Minas Gerais e de São Paulo. Preferiu aceitar o convite da área administrativa na própria instituição na qual estudara e trabalhara.

Percorreu todos os caminhos como aluno e agora como funcionário até alcançar o cargo de contador. O mais novo a chegar ao posto até então. Com o aditivo de que era solteiro, algo praticamente impossível de se imaginar naqueles idos. Alcançou o cargo máximo que lhe era possível galgar com 26 anos de idade e com apenas quatro anos de casamento. A partir dali não existiria mais função a ser alcançada. Recebeu convite para assumir a diretoria de uma unidade fabril. A instituição não o liberou...

Até hoje guarda algumas lembranças (certificados e afins): a de melhor contador naquela região imensa que incluía vários estados do Brasil e a avaliação de que era uma das cinco maiores promessas para cargos elevados naquela organização mundial. Era considerado um modelo de administrador para o futuro. Capacidade profissional e total zelo às questões da fé. Ocupava cargo de liderança na igreja local...

Tudo corria bem até que chegou ao lugar um indivíduo. Hoje, sem dúvida, considerado (por quem observa com cuidado) como sendo enviado especial de um ser sobrenatural. O ano foi o de 1989 e o complicador ocorreu no segundo semestre.

O dia “D” ele não guardou na memória, mas lembra-se que sete pessoas entraram em sua sala e lhe mostraram papéis e relatórios que denotavam fraude. Valores (bolsas) de uma instituição de saúde que eram destinados a alunos carentes estavam sendo desviados. Os alunos assinavam documentos imaginando que recebiam determinados montantes como bolsa escolar, mas seus nomes e assinaturas eram usados para desviar valores maiores. A diferença ia para o bolso do famigerado indivíduo que chegou à instituição em 1989...

As sete pessoas pediram para que agisse e de preferência como pastor, conversando firmemente com aquele que conspirava contra os bons costumes. O desvirtuado deveria devolver os valores afanados, procurar o pastor, historiando os fatos e, por fim, ser remanejado imediatamente para longe dos recursos financeiros. Demissão? Seria por conta da mesa diretiva...

Ele agiu como pastor. E aí residiu o erro. Não se combate a bandidagem com o pastorado. Mas como alguém tão novo e ingênuo poderia agir diferente?

Ele não desistiu. Procurou todos os que podiam tomar providências e como nada aconteceu, como deveria, ele tomou a última medida pastoral.

Levantou-se na congregação, num sábado, e expôs o problema para a membresia.

O que aconteceu depois? O início de uma história de dor, decepção, corrupção, maldade e ausência absoluta de religião...

Essa história tem como título: “momentos de cão sarnento”.

Quem seria o cão sarnento? Aquele mesmo que ao longo de dez anos superou metas e trabalhou com esmero. Que exercitou fé e a razão.

Os momentos de cão sarnento tiveram início no segundo semestre de 1989. Presentes do lado de cá: um pastor desolado, com 27 anos e uma esposa com três meses de gravidez.

Os momentos de cão sarnento tiveram do lado de lá: um diretor geral omisso, um diretor administrativo conivente, um financeiro que se apropriava de bens alheios e muitos, mas muitos indiferentes. Existem outros personagens que apareceram ao longo dos momentos de cão sarnento: um jurista, um professor, um dublê de político e outros corporativistas de plantão...

Como estão, hoje, os envolvidos nesse episódio? O que de bom trouxeram para a comunidade? Causaram constrangimento no meio? Viveram e vivem dentro dos padrões estabelecidos pelo contexto moral-religioso? Como vivem com as suas famílias? Trouxeram opróbrio à comunidade? Envolveram-se com casos policiais? Em adultério contumaz? Famílias duplas?

Em doses homeopáticas esse blogueiro apresentará com certa nostalgia os “momentos de cão sarnento”, de 1989 até os dias atuais...

Continua...
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2 comentários:

Cleiton Heredia disse...

História interessante! Já a conhecia, porém não com os detalhes com que está sendo contada agora. Irei acompanhá-la com muita atenção.

Acredito que as pessoas que sabiam da fraude e não fizeram nada, agiram assim porque também tinham "o rabo preso", ou porque eram covardes e incompetentes com medo de perder "a boquinha" na "obra".

Tenho um verdadeiro nojo desta "corja" ao ponto de sentir ânsia de vômito (desculpe a falta de fineza, mas quando se trata deste "bando", não consigo ser mais polido).

Cristão Livre disse...

Tomei a liberdade de postar os links de sua série "Dias de cão sarnento" no blog NOVAMENTE ADVENTISTAS, em debate de quarta-feira, 23 de janeiro de 2013 - Na Mira da Verdade - Podemos quebrar promessas que fizemos a Deus?

Veja no Link: http://novamenteadventistas.blogspot.com.br/2013/01/na-mira-da-verdade-podemos-quebrar.html?showComment=1359137608511#c2976327316787240215

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