terça-feira, 16 de setembro de 2008

Momentos de cão sarnento - II


Cães sarnentos e cachorros de rua! Em geral são uns vira-latas sem donos e sem casas. Os cães de rua são desprezados e muitas vezes espancados, maltratados, usados como aperitivo para cachorros de briga. O cão sarnento está num estágio pior. Nem para a maldade tem serventia. Haveria de estragar a boca e dentes dos briguentos profissionais! Quem se aproximaria de um animal pestilento? Não é apenas um ser de rua, sem valor e sem bandeira. Trata-se de uma criatura desprezível e nojenta, que causa repulsa e gastura. Amargar o desprezo é cardápio que se repete na rotina desse tipo de vivente. A dor e o caos são os temperos do alimento diário...

Imaginem um animal que antes era bem quisto, limpo, perfumado e que de repente do conforto da casa é lançado na sarjeta hedionda da vida. Em lugar da água limpa a lama. Em vez do perfume a peste que toma conta do corpo. O físico, antes bem nutrido, torna-se flácido e horripilante. O cheiro cresce de forma insuportável. Vive a se coçar e lançar na atmosfera fungos e outras imundícies. Impossível olhar para animal assim e não se encher de asco.

Antes da sarjeta ele tinha companhia e afagos. Passava de colo em colo. Era beijado e cheirado. Agora não tem companhia e leva pedrada. Não sabe mais o que é aconchego afetivo. Ninguém o beija (que nojo!) e o odor pútrido não pode ser aspirado pelas narinas dos sadios...

O ser humano também tem seus dias de cão. Tem momentos especiais, aqueles típicos do cão sarnento.

O nosso personagem humano, como se sabe, experimentou do conforto merecido e passou a conviver com o lado obscuro de um segmento social que se considera modelo. Tal qual canino sarnento, que agora vê o mundo por outro prisma, o nosso personagem começou a enxergar o que existia debaixo do véu. Antes ele, que era figura carimbada em encontros e “dançarás”, foi remetido ao desterro. Sua casa, que vivia repleta de gente “do bem”, viu-se deserta de corpos e de almas.

Interessante: a face oculta dum setor corporativista só pode ser enxergada quando confrontada com realidades que se diferem, situações que se divergem. Os mesmos que antes gargalhavam passaram a exibir um sorriso amarelo, um olhar de peixe morto. Algo sem vida e melancolicamente real. Agora sim a realidade mostrava-se indubitável. E que realidade horrível! Horrível e muito horrível, amarga e muito amarga.

O amargor remete a específicos momentos de cão sarnento...

Nosso personagem, meses antes da queda, exercia função diretiva comandando chefes de setores. Os mesmos que submetiam suas realizações diárias a um crivo sério, mas leal. Não havia possibilidade de “puxada de tapete”, eles sabiam que assim funcionava. Não havia trairagem. Podiam confiar no jovem comandante.

Havia um desses subalternos, o que mais se acercava para mostrar serviço, que denotava ser muito íntimo, insurgia-se como o mais chegado. Chefiava um setor emergente e em franco crescimento nos lucros. Aquele departamento era uma espécie de menina dos olhos. Passara a funcionar num novo local, novo mesmo, cheirando a tinta fresca...

Depois da queda do chefe escafedeu-se! Nunca mais se mostrou. Não chorou, não acendeu vela. Não apareceu! Nem mesmo para xingar ou cuspir. Nada!

Um dia andando nas proximidades do largo treze, em Santo Amaro, bem atrás do Bradesco da Adolfo Pinheiro, nosso personagem que ia na direção daquela agência o avistou. Eis que ele vinha em sentido contrário. Ambos se viram! Impossível que os olhares não se cruzassem...

Mas quem não muda de calçada quando se defronta com um cão sarnento? Pois aquele antigo subordinado mudou de lado na rua e fingiu não ver quem de lá vinha. E mais: simulou estar perdido a olhar para a parede de uma loja, como se lá houvesse algo para ser visto...

Nosso personagem experimentou atitudes similares a essa por dias, semanas, meses e anos! Os mesmos que no prato comeram, nele passaram a cuspir. Cuspir? Nem mesmo isso. Quem cuspiria em algo que pertencesse a um cão sarnento? Não se queima vela em velório de defunto ruim, não se bate em cachorro morto e não se atenta para um fósforo riscado... Ao cão sarnento um destino que a tudo isso supere! A ele o desprezo e a desonra!

Nesses dias de cão sarnento aquele que no dia 11 de dezembro de 1979 entrou pela porta da frente da instituição notou, tristemente, que foi jogado na sarjeta e pela porta dos fundos...

Teve, porém, algo novo: a visão além do alcance. Algo que não é peculiar num cão bem tratado. A visão de cão sarnento lhe permitiu notar o que existia atrás dos sorrisos, dos tapinhas nas costas, das supostas orações de fé e dos discursos retóricos. Pôde enxergar o que só se observa em momentos indescritíveis vividos por um cão sarnento: a hipocrisia reinante, que está sempre bem vestida, penteada, perfumada e que se dirige semanalmente aos centros de comunhão e de louvor...

Continua...


Enéias Teles Borges

Um comentário:

Cleiton Heredia disse...

Nesta história o personagem não era um cão sarnento de fato, pelo contrário era até muito sadio, mas foi considerado e tratado por todos como tal.

Conheço muito bem o sentimento de indignação que deve ter se apropriado deste personagem devido à injustiça que sofreu (já vivi uma experiência similar).

Quando se é um cão sarnento de fato, ser tratado como tal já é o esperado como normal, porém quando se está sadio e os outros lhe imputam um estigma que não existe, a revolta pela injustiça praticada é muito grande.

E o que é ainda pior e só aumenta a revolta, é que o personagem passou a ser tratado assim, apenas porque quis fazer a coisa certa.

INJUSTIÇA!!!

Na verdade toda esta história acaba nos mostrando que os verdadeiros cães sarnentos eram os que abandonaram o personagem no momento que ele mais precisou de apoio.

Eles sim é que possuíam o pior tipo de sarna que se conhece que é a SARNA DE ALMA e que resulta na PODRIDÃO DE CARÁTER.

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