quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O genoma do mamute

O genoma do mamute
Enéias Teles Borges


04/12/2008 - Universo Online (assinantes).

O genoma do mamute abre as portas para reavivar espécies extintas. As dificuldades técnicas não são insolúveis, mas existem dilemas éticos

Por: Javier Sampedro

O genoma recuperado dos gelos siberianos é um avanço enorme que nem mesmo o recém-falecido Michael Crichton ousou imaginar em seu livro Jurassic Park. Mas daí a ressuscitar o mamute, existem obstáculos gigantescos que a genética atual não é capaz de contornar. Mas todos esses problemas são puramente técnicos, e serão solucionados mais cedo ou mais tarde. Será que veremos um parque safári na Sibéria com mamutes devolvidos à vida pela graça do homem? E principalmente, o que acontecerá com o homem de Neandertal, o segundo genoma fóssil previsto?

Um óvulo fecundado humano é muito parecido com o de um mamute. Se o primeiro produz uma pessoa e o segundo, um mamute, isso se deve ao genoma, o conjunto de genes, que dirige o desenvolvimento da evolução.

O genoma do mamute consiste em 4 bilhões de bases, ou letras químicas do DNA (aggcttcaa...), e seqüenciá-lo é determinar a ordem exata dessas letras. Isso é o que os cientistas russos e norte-americanos (quase) conseguiram fazer recentemente.

O genoma do mamute atual é como se fosse uma cópia imperfeita de um livro (tecnicamente, sua cobertura é de 0,7 vezes um genoma). Segundo estima o caçador de genomas fósseis Svante Pääbo, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, uma seqüência de "qualidade razoável" precisaria de uma cobertura de 12 vezes, ou 12 livros imperfeitos.

Ainda assim, uma "qualidade razoável" significa um erro a cada 10 mil bases (as letras a, g, c, t do DNA). Como o genoma dessa espécie tem uns 4 bilhões de bases, isso dá um total de 400 mil erros. Esses "erros" no genoma de papel se transformariam em "mutações" reais num mamute reconstruído.

"Ainda não podemos devolver o mamute à vida", diz o subdiretor do centro de DNA antigo da Universidade de Adelaide, Jeremy Austin. "Uma seqüência genômica não faz um ser vivo. Tudo o que temos agora é um genoma parcial, com um número considerável de erros. Seria como tentar fabricar um carro com apenas 80% das peças, e sabendo que algumas estão quebradas".

Entretanto, nenhum desses obstáculos é insuperável. Contorná-los é apenas uma questão de mais mamutes e mais dinheiro. E a solução de muitos outros problemas aparentemente mais graves pode ser mais simples ainda: a trapaça. Ou seja, abandonar a obsessão de reproduzir fielmente um mamute, e conformar-se com algo que apenas se pareça com o animal. A evolução biológica, afinal de contas, também é oportunista.

Por exemplo, os genes do mamute são agora entidades virtuais: textos(aagattcct...) escritos em um papel, ou gravados na memória de um computador, e será preciso transformá-los em coisas, DNA real dentro de cromossomos palpáveis, para que sirvam para algo. "Mesmo que tenhamos um genoma completo e bastante preciso", diz Jeremy Austin, "resta a questão de como construir os cromossomos". Não sabemos nem sequer quantos cromossomos tinha o mamute.

Mas é provável que isso não seja necessário. Duas espécies de moscas indistinguíveis à vista humana podem diferir enormemente em sua estrutura cromossômica. Até duas pessoas tem algumas diferenças na estrutura. Os elementos essenciais de cada cromossomo são os que iniciam sua duplicação em cada ciclo de divisão celular - origens de replicação - e os que garantem a distribuição das duas cópias às células filhas - centrômeros. E ambos foram sintetizados artificialmente com sucesso.

O mesmo vale dizer em relação a colocar os cromossomos dentro de um núcleo. E o restante são técnicas que ainda não foram testadas em elefantes, mas que já são corriqueiras em outros mamíferos: introduzir o núcleo em um óvulo, estimulá-lo para que comece a desenvolver-se e implantá-lo numa elefanta. Esses são os passos de uma clonagem, ainda que entre espécies diferentes, sendo que uma delas inexistente.

De acordo com projetos existem há anos, o primeiro objetivo de uma ressurreição hipotética do mamute será provavelmente um parque-safári.Em 2002, por exemplo, uma equipe de cientistas japoneses financiados pela companhia tecnológica Field inspecionou os gelos siberianos em busca de mamutes bem preservados. Eles estavam interessados nos testículos do animal, porque o esperma é um dos tecidos que melhor se conservam a frio. Sua intenção era utilizar um espermatozóide para fecundar um óvulo de elefanta. Se nascesse uma fêmea híbrida, eles tornariam a fecundá-la com outro espermatozóide do mamute original, e assim sucessivamente até construir um parque-safári de 150 quilômetros quadrados na república siberiana de Sakha, no noroeste da Rússia.

Se a finalidade de ressuscitar o mamute é exibi-lo num parque-safári siberiano, as trapaças podem ser levadas ao extremo, como sugere Pääbo à revista Nature. O Instituto Broad de Cambridge, Massachusetts, um dos pólos do projeto genoma, já trabalha na seqüência de um dos parentes vivos do mamute, o elefante africano Loxodonta africana.

Comparar os genomas dos dois paquidermes conduzirá os cientistas aos genes-chave que distinguem o mamute, ou seja, os genes responsáveis pela sua cor escura, por seu pelo abundante e, sobretudo, por seus dentes exagerados. Pääbo acredita que a introdução desses poucos genes num elefante comum produziria algo bastante parecido com um mamute para ser exibido num parque-safári. Um pseudo-mamute de exibição.

"Não seria um mamute em nenhum sentido que pudesse satisfazer a um purista", diz o geneticista de Leipzig, "nem a um ecólogo, nem a um idealista que sonhe em restaurar um grandioso passado perdido. Mas seria suficiente para um parque de atrações e evitaria os problemas técnicos mais perigosos. E é tudo o que posso aspirar a ver nos meus anos de vida".

Michael Crichton acertou três vezes com seu livro Jurassic Park (1990). Primeiro, preveu a ressurreição de espécies extintas. Depois, sua exibição em parques de atrações. E terceiro, as trapaças ao estilo de Pääbo. Seus cientistas não puderam recuperar nenhum genoma completo de dinossauro, e introduziram os genes-chave de dinossauro em simples rãs (uma escolha discutível; o avestruz parece uma opção melhor, já que as aves evoluíram a partir dos dinossauros). Dessa forma, os monstros jurássicos do parque não eram nada além de pseudossauros de exibição incapazes de satisfazer a um purista. Mas isso não os impedia de dar mordidas.

O verdadeiro dilema ético é que, quando for possível ressuscitar o mamute, também será possível ressuscitar o homem de Neandertal, uma vez que esse será o segundo genoma fóssil seqüenciado. Essa é uma questão totalmente diferente, mas não por questões ecológicas. Os problemas técnicos serão tão formidáveis quanto no caso do mamute. Mas também, da mesma forma, nenhum deles será insuperável. E a solução estará em abandonar a obsessão em reproduzir fielmente um Neandertal, e conformar-se com algo que se pareça com ele.

A comparação do genoma humano com o do Neandertal já está em marcha, e pouco a pouco revelará os genes específicos do Neandertal. Será possível então criar um pseudo Neandertal, mas nesse caso a história é bem diferente, porque falamos de uma espécie humana inteligente, que cuidava de seus doentes e enterrava seus mortos.

Os Neandertais se extinguiram há menos de 30 mil anos. As últimas populações viveram em Gibraltar. Sua capacidade craniana era maior que a nossa, e as evidências anatômicas e genéticas apontam para o fato de que eles possuíam a faculdade da linguagem. Eles se espalharam por todo o continente europeu durante centenas de milhares de anos, e co-existiram com a nossa espécie, o Homo sapiens, durante cerca de 10 mil anos na Europa. Nosso papel em sua extinção é um mistério.

Em todo caso, o avanço da genética foi mais rápido do que imaginou Crichton ou qualquer cientista dos anos 90. Os únicos genomas seqüenciados até então eram de vírus, com cerca de 10 quilobases (10 mil letras de DNA).

O genoma humano é 10 mil vezes maior, e os mamutes e dinossauros estão próximos disso, de modo que ler um genoma fóssil completo desses animais era inimaginável (por isso as rãs). Mas 20 anos depois isso é um fato.

"O campo do DNA antigo avançou muito desde o primeiro estudo, de 1984, que conseguiu uma amostra de material genético da quagga, uma espécie de zebra extinta", diz Michael Bunce, chefe de DNA antigo da Universidade de Murcoch, na Austrália ocidental. Para este cientista, como para a maioria, o maior interesse desses trabalhos não é reavivar as feras, mas aprender como os genomas se relacionam com os organismos, como as variações dos genes alteram a forma e as características das espécies.

"Comparando os genomas do mamute e dos elefantes atuais, ou do Neandertal e dos humanos modernos, podemos começar a responder as questões biológicas mais fundamentais", afirma Bunce. "Que genes são responsáveis por quais características físicas? Comparado com seus primos africanos, que genes alteraram o mamute para adaptá-lo a climas frios?"

No fundo, Bunce está buscando os mesmos genes que os hipotéticos criadores do parque-safári, ainda que por razões distintas. "Se poderemos dentro de alguns anos devolver o mamute à vida? Nada disso

Sabermos a seqüência de DNA de algo não quer dizer que possamos manipulá-la geneticamente para recriar o organismo extinto. Esse tipo de desenvolvimento ainda é uma “fantasia", diz o especialista.

Mas há uma palavra que aparece por todas as partes nesse contexto: ainda.

Um túnel do tempo

Há túneis do tempo genéticos que nenhum escritor explorou, mas com os quais os lingüistas trabalham diariamente. Não há gravações de 10 mil anos atrás que demonstrem que a palavra pé era "pod" na língua indo-européia ancestral. Os lingüistas comparam as palavras pie, foot, vot, pés e pada e deduzem qual a sua origem evolutiva. Os biólogos podem fazer o mesmo com os genes.

A comparação entre genomas e linguagens é mais do que uma metáfora, porque o DNA é um texto num sentido muito literal. Todos os genes têm a mesma estrutura (a famosa dupla hélice do DNA). A informação genética é a única coisa que distingue um gene do outro, que é a ordem das bases (as letras a, g, c, t) em fileiras. Da mesma maneira que a informação de um texto está contida na ordem das letras.

A comparação entre genomas de mamíferos permite reconstruir o genoma do primeiro mamífero. A comparação entre humanos, moscas e medusas revela o genoma do primeiro animal, a origem da evolução animal. O mesmo vale para cada gene concreto. Não é necessário recuperar fisicamente aquele DNA de 600 milhões de anos atrás. Pode-se deduzi-lo, assim como a palavra pode.

Se há uma conclusão geral, é que todas as funções fundamentais já estavam presentes no primeiro animal, há 600 milhões de anos. A evolução consistiu desde então em amplificar e refinar funções concretas em cada linhagem animal. Por exemplo, os sentidos sempre existiram, e todos têm uma lógica genética similar. Mas os genes dos receptores sensoriais (olfativos, do tato e demais) se propagam e retraem continuamente no genoma para adaptar-se às demandas do entorno.

Os geneticistas também exploram as possibilidades futuras. Utilizam os mesmos mecanismos que a evolução, mas em simulações aceleradas. Por exemplo, as proteínas costumam ser feitas de módulos, e a evolução gera novidade recombinando-os. As opções combinatórias são inesgotáveis, e os seres vivos só usam uma pequena fração das possibilidades. No laboratório, podem ser criadas muitas funções novas por meio desse método.

Um parque-safári verdadeiramente inovador não resgataria o passado de gelo. Mas o deduziria a partir de seus herdeiros atuais. E mostraria a estes as suas possibilidades futuras, além da certeza da extinção.

Tradução: Eloise De Vylder.

Fonte: Universo Online (para assinantes).
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