quinta-feira, 23 de junho de 2011

Portas: de padres e de médicos

Vitor Hugo, em sua obra “Os Miseráveis”, falando a respeito dos médicos e dos padres, disse que a diferença entre a porta da igreja e a do consultório era apenas uma: uma porta nunca era trancada e a outra permanecia sempre aberta. Isto é, não havia diferença entre a disposição de médicos e padres no exercício das respectivas vocações.

O que vemos hoje? Por força de inúmeros fatores os padres, pastores e afins, bem como médicos e similares, não representam mais o último estandarte da abnegação. Estamos num mundo em que os habitantes são contados aos bilhões. Era de se esperar que o aumento da população e suas conseqüências haveriam de mudar a imagem, hoje nostálgica, dos padres e dos médicos.

Naturalmente cito médicos e padres para exemplificar. A tônica é: não há mais a possibilidade de relacionamento personalizado entre as pessoas. As relações entre indivíduos e profissionais estão mecanizadas; mesmo entre pacientes e médicos, líderes religiosos e membros leigos.

É da vida, diriam muitos. Não deveria ser assim, anelo de outros tantos. Fato é que em meio à multidão estamos perdidos e sem rumo. Até mesmo no interior, nas quase raras cidades pequenas, não se verifica mais aquele calor humano. As cidades podem ser pequenas em número de habitantes, mas são iguais no contexto da globalização. A indiferença está globalizada. Uma pena...

Interessante observar como essa indiferença chegou às congregações da fé. O entendimento que os membros tinham era bem simples: comunhão com Deus durante a semana, cada indivíduo e cada família. Nos finais de semana os membros se reuniam para a comunhão com Deus e (principalmente) para a comunhão dos fiéis. Os membros, irmãos de fé, queriam saber das alegrias e tristezas dos outros, historiar as graças e os infortúnios próprios. Esse procedimento contribuía para o fortalecimento das congregações, dando fôlego para a nova semana, até o outro reencontro.

Hoje não é mais assim. Durante a semana a correria é total. Não há mais comunhão individual e familiar. Os eventos de finais de semana são transformados numa espécie de resumo (supletivo) da comunhão com Deus. Não sobram tempo e interesse para a comunhão dos fiéis...

As reuniões semanais transformaram-se em espetáculos indutores e enganadores. Induzem a crer numa realidade inexistente e, portanto, alienante. Enganam: os líderes fingem que ensinam e os membros fingem que recebem ensinamentos. É um espetáculo triste! Multidões dirigindo-se aos locais de culto para buscar algo que sempre esteve e sempre estará nas suas próprias casas. Grupos gigantescos buscando na igreja aquilo que ela não tem e nunca teve pretensão de possuir...

É uma mentira que se repete semanalmente e tudo em nome de Deus!

O ideal seria que as portas das igrejas jamais fossem fechadas ou como a dos médicos, que ficassem sempre abertas ou vice-versa.

Mas como uma porta da igreja poderia ficar sempre aberta se não mais existe igreja? Afinal o que é igreja?

Enéias Teles Borges
Postagem original 13/06/2008

4 comentários:

Cleiton Heredia disse...

Muito bem observado: "A indiferença está globalizada". Concordo plenamente! Não só a indiferença em relação ao próximo, mas também a indiferença em relação a busca sincera pela verdade.

Estive na classe este sábado passando a lição e tentei introduzir o assunto dizendo que as pessoas ali não deveriam sentir-se incomodadas com alguns questionamentos levantados, pois a verdade não teme investigação. Pelo contrário, deveríamos suspeitar de todo e qualquer ensinamento que temesse ser questionado.

Para que? Muitos levantaram a mão para participar dizendo que alguns questionamentos são prejudiciais, afastam as pessoas mais simples da fé, são especulativos e não levam a lugar nenhum, etc.

Ouvi a todos, mas disse ao final que se a fé inquestionável deve ser nosso alicerce, não temos o direito de questionar a fé de mulçumanos, budistas, espíritas, pois desta perspectiva a fé deve prevalecer em detrimento da própria verdade.

Continuei a lição, mas confesso que fiquei profundamente incomodado com esta atitude de não questionar para não afastar as pessoas da fé.

O que é mais importante: a fé, seja ela qual for, ou a verdade, seja ela qual for?

Acho que esta foi o último convite que aceitarei para passar a lição.

Ricardo Cluk de Castro disse...

Olá amigos,

Eu não sou indiferente a ninguém. Faço questão de atormentar cada um em suas peculiaridades (rs).

Cleiton,

O quê você esperava dos membros da classe? Que eles passassem a debater sobre os minados fundamentos da religiosidade contemporânea? Desiste cara. Isso não irá acontecer.

Muitas vezes a fé não é a prova do que não se pode ver, mas do que não se quer ver.

Altamirando Macedo disse...

Estão querendo encontrar uma verdade onde sabem, antecipadamente, que ela não está. A indiferenca ou o questionamento generalizado são frutos desta busca improdutiva.Contentar-se com meias verdades é o mesmo que tentar curar-se com remédios dosados a meias gotas.

Sobre o ombro de gigantes disse...

Ilustre,

Necessidades espirituais acabam virando necessidades físicas e necessidades físicas afetam o espírito.
Certa vez; adolescente ainda acreditava em Deus, procurei uma dessas portas num momento do desespero. Estava fechada. Sequer eu antes tive o ensinamento necessário para buscar conforto da alma em momentos de porta fechada. Senti falta da autoridade e da experiência de representante, e principalmente do conforto da palavra.

“Meu filho, volte tal dia e rezaremos todos juntos...” Minha emergência da alma teria que esperar.

Foi um aprendizado que mais tarde ajudou-me, já como médico, identificar dores da alma.

Lamento igualmente as vezes que me percebi ausente; na palavra e no conforto à doença; simplesmente sendo burocrático.

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