terça-feira, 5 de outubro de 2010

Fanatismo religioso na História

Marcos Lopes e Marcos Lobato retomam o tema do fanatismo e numa perspectiva histórica constroem de maneira ensaística e até literária uma narrativa sobre as práticas de fanatismo, de movimentos e seitas religiosas ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX, XX e início do XXI, em várias partes do mundo.

É preciso dizer que o fenômeno do fanatismo, em todas as épocas esteve imbricado em processos políticos, econômicos e sociais, buscando um espaço estratégico para sedimentar o fervor religioso.

Nesse enfoque, as tradições e as práticas religiosas são componentes do chamado fundamentalismo que caracteriza o fenômeno do fanatismo nos dias atuais. Não é por outra razão que os autores afirmam que o fanatismo religioso (do passado e do presente) é denominado de “choque de civilização” ou “choque de religiões”. O fanatismo caracteriza-se pelo “excesso de zelo na defesa de certos ideais religiosos dando margem para alguns assombrosos banhos de sangue ao longo da História”, afirmam Lopes e Lobato (p. 10).

O trabalho está dividido em três eixos temáticos, partindo do tema fanatismo. Na primeira parte o fanatismo religioso é tratado enquanto manifestações históricas ocorridas no Ocidente e Oriente, em diferentes contextos ao longo da Idade Média no tempo das Cruzadas Cristãs, na época da Inquisição e da Caça às Bruxas nos séculos XVI e XVII.

Na segunda parte são analisadas as práticas de fanatismo mais recentes no século XX, como é o caso da seita chamada Nova Era e dos grupos terroristas com ações no plano internacional, praticadas por grupos religiosos armados, identificados como sendo movimentos fundamentalistas islâmicos

Os autores desenvolvem uma narrativa muito bem articulada a partir de diferentes fontes, como as obras literárias de Swift, Yates, Dumas, Cervantes e Calvino, além dos discursos filosóficos de Voltaire, Roterdã, Montesquieu e Diderot. Dessa interconexão discursiva da filosofia com a literatura surge uma perspectiva de analise que envolve a ironia, a sátira e principalmente a alegoria enquanto categorias para uma compreensão crítica do fenômeno do fanatismo na Idade Média, na Época Moderna até os dias atuais. Esse é o fio condutor que os autores competentemente adotaram para uma abordagem histórica inovadora. Nota-se que a opção de fontes centradas nos clássicos foi bem acertada, pois são obras cujas interpretações em torno da história do fanatismo permitem uma multiplicidade de sentidos. Aliás, não é outra coisa que dizem os autores: “[...] um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tenha para dizer” (p. 32)

A parte historiográfica e teórica do tema fanatismo apresenta como suporte para a analise e reflexão, pesquisadores especializados no assunto, como Le Goff, Ginzburg, Febvre, Le Roy Ladurie, Delemeau, Mandrou, Gellmer, Michelet e Massoulié. Lopes e Lobato analisam as diferentes formas de fanatismo praticados por seitas religiosas e movimentos derivados das heresias e cismas no ocidente. Essas práticas e idéias foram combatidas também de modo violento e fanático pelas Cruzadas Cristãs da Baixa Idade Média e pela Inquisição. As perseguições se estenderam ainda ao longo da Época Moderna nos séculos XVI e XVII. É nesse período da História que apareceram os primeiros críticos do fanatismo religioso, como os filósofos Montaigne, Montesquieu, Voltaire, Hume e Diderot, além de escritores como Jonathan Swift e Cervantes (p. 15). Montesquieu, por exemplo, criticava os padres fanáticos de diferentes ordens religiosas por acreditarem na superioridade de suas seitas e no monopólio das “verdades divinas”. Enfim, finalizam os autores, os filósofos iluministas combateram toda forma de fanatismo e as guerras de religiões, como aquelas ocorridas na França entre católicos e protestantes. Voltaire criticou, ostensivamente, os perseguidores de bruxas e das práticas de bruxaria, pois acreditavam ainda na sua existência real

Os autores incursionam também na perspectiva da história cultural, valorizando abordagens e métodos de investigação da história do comportamento de homens comuns, começando pelas variações das diferentes culturas marcadas por manifestações folclóricas e pagãs do século XVI, como é o caso da análise feita pelo historiador Carlo Ginzburg.

Lopes e Lobato aprofundaram suas reflexões em torno do embate do catolicismo com o protestantismo após as Reformas de Lutero, marcando os grandes conflitos entre os reformistas franceses e os Estado com sua Justiça unilateral e violenta na condenação dos acusados tendo à frente uma maioria de juizes ligados ao rei católico francês. Milhares de pessoas foram condenadas por Tribunais católicos sob a alegação de que defendiam a França e a monarquia. Era uma maneira muito estranha de se fazer justiça pela simples e única liberdade que de fato não existia.

Os autores também enfocam a ausência de tolerância por parte dos movimentos religiosos – aliás uma característica efetiva de uma época de muita violência e fanatismo religioso. Para tratar dessa questão, os autores investigam as obras de Erasmo de Roterdã e Montaigne onde há uma filosofia e crítica à intolerância religiosa.

Uma interessante perspectiva de análise que os autores desenvolvem sobre o fanatismo religioso, neste livro, diz respeito ao uso do filme como fonte histórica sobre esse tema. Para isso, analisaram o filme A Rainha Margot, que foi inspirado no romance de Alexandre Dumas. Nesse filme, o problema da intolerância é tratado com rigor histórico, exemplificado pelo conflito entre os hunguenotes e os católicos franceses nos anos de 1572 e 1574. Outro filme analisado, Giordano Bruno, mostra todo o processo de emergência do fanatismo religioso contra os homens de ciências e os saberes humanos.

A violência não é apenas uma prática de julgamento, mas a própria negação da idéia de Justiça. Como muito bem assinalam os autores: “A banalização da violência é um traço muito evidente. O indivíduo se deixa arrastar pelo impulso de paixões que revelam aspectos contrastantes de sua personalidade: ele oscila entre a cortesia e a brutalidade, a constrição” (p. 45).

Os autores ressaltam a importância da contribuição de Voltaire quanto a análise e compreensão das práticas nos suplícios públicos e nos movimentos coletivos que marcaram as varias formas de fanatismo.

Um tema instigante que Lopes e Lobato tratam neste livro diz respeito ao fenômeno da bruxaria que durou do século XV até a primeira metade do século XVIII. Ao analisarem a bruxaria os autores arrolaram uma série de práticas das autoridades eclesiásticas e leigas de repressão e controle das bruxas. Por exemplo, o crime da lesa majestade, curandeirismo e outras práticas de bruxarias geralmente eram motivos de condenação à fogueira. Os sabás, as magias e outros rituais coletivos, praticados na calada da noite, eram execrados pela Igreja e pelos Tribunais. Os autores lembram, porem, que a caça às bruxas deve ser compreendida no contexto do Antigo Regime, uma época de violenta repressão política e social.

O curioso é que geralmente as mulheres é que estavam à frente das práticas de magias, misticismos e bruxarias. Mas o Estado Absolutista não descuidou de tais práticas e logo inventou uma série de leis repressivas para combater toda forma de bruxaria. Enfim, cabia ao Estado e à Igreja a manutenção da ordem e do controle social através de seus aparelhos repressivos.

Na última parte do livro, Lopes e Lobato estudam as seitas e os fanatismos religiosos do século XIX e XX. São grupos radicais com regras e códigos de tipo militar voltados para a prática da violência, caracterizados por intolerância e racismo. Tais grupos surgiram após as reformas protestantes na Inglaterra, Irlanda do Norte, França e também nos EUA. No século XX muitos desses movimentos tornaram-se fundamentalistas, notadamente os de origem protestante. O fundamentalismo como corrente religiosa surgiu também na África, em países como Nigéria, Argélia e Egito. No Oriente Médio, grupos fundamentalistas foram organizados com base na religião muçulmana e em países como o Líbano, Palestina, Irã, Iraque, Arábia Saudita, Paquistão e Afeganistão.

Alguns grupos radicais religiosos fundamentalistas vão assumindo cada vez mais uma postura fanática e terroristas como são os grupos Al Qaeda, Jilhad islâmica, Hezbollah e os Sikhis na Índia.

Finalmente, os autores interrogam sobre o futuro do fanatismo. Haveria algum futuro? Será o fim do fanatismo religioso nos próximos vinte anos? Na visão de Lopes e Lobato nada indica alteração nas práticas dos grupos e dos movimentos fanáticos no mundo hoje globalizado. Os conflitos étnicos, raciais e migratórios estão potencializados pela globalização – concluem os autores – e, por certo, continuarão produzindo atos de violência e de intolerância. Triste conjuntura emergente neste início de século.
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Postagem original: 24/05/2008.
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