quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Hobbes e o Estado de Natureza

Texto produzido ao longo do cumprimento dos créditos. Mestrado Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP. Uso livre, desde que a fonte seja indicada. Postagem original: 17/12/2007.

Hobbes e o Estado de Natureza

1. Introdução

Entender o pensamento de Thomas Hobbes, filósofo metódico, impõe dificuldades diante da complexidade de suas propostas. Uma maneira tida como segura para começar a compreender suas concepções está numa análise do que ele diz do estado de natureza. Os contratualistas foram muito contestados no século XIX (também no século XX) justamente por asseverar que a origem do Estado está num contrato, como se antes dele os homens vivessem livres, sem poder e desorganizados. Essa organização somente seria implantada depois de um pacto voluntário firmado entre todos, que os subordinaria politicamente e propiciaria um convívio social harmonioso.

Uma das dificuldades encontradas para defender o pensamento de Hobbes está na maneira como os filósofos, contrários à postura dos contratualistas, expunham (possivelmente porque não entenderam as concepções hobbesianas) a forma como o contrato social teria sido firmado. Desconsiderando o arrazoado de que o estado de natureza seria hipotético, ridicularizavam a sua origem: afirmavam que seria impossível aos selvagens, sem qualquer espécie de experiência social, o domínio de uma linguagem e a posse de noções elementares do direito ao ponto de se reunirem para firmar um pacto dessa magnitude[1].

É fundamental o aprofundamento nas proposituras de Hobbes, notadamente nas suas concepções sobre o homem e estudar a sua hipótese do estado de natureza, já adiantando que nenhum contratualista pensou que selvagens teriam se reunido com o fito de elaborar uma constituição de estado e que o homem natural de Hobbes não é um selvagem. Deve ficar claro que a natureza do homem não muda com o correr do tempo, ao longo da história, isto é, a análise hobbesiana não é a da transformação da natureza humana, que seria impossível. É um estudo objetivo do homem como uma máquina natural, sujeito ao encadeamento de causas e efeitos, com apetites e aversões, como medo da morte violenta, mas que conserva a esperança da paz duradoura.

2. Liberdade Plena e Igualdade

Hobbes, no Capítulo XIII do Leviatã, concentra-se em expor a condição do homem em seu estado de natureza (ou condição natural do homem):

“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa igualmente aspirar.” [2]

A afirmação é aparentemente simples, quando vista no contexto do século XXI. Esse texto famoso, que causou estranheza quanto ao pensamento hobbesiano, não afirma categoricamente que os homens são iguais, mas “tão iguais”, que têm igualdade suficiente para não sobrepujar (ou o contrário) os demais. Tal premissa será melhor entendida, quando forem comparados o estado de natureza com o estado civil. As análises dos comentadores que foram ou serão feitas do pensamento de Hobbes precisam estar concentradas apenas no estado de natureza por ele descrito e apenas ali, isto é, tentar vislumbrar o homem, em seu estado natural, desconsiderando totalmente a imagem que se tem do mesmo ser humano, no estado civil, cheio de regramentos.[3] Somente assim é possível imaginar um estágio de “quase” igualdade entre todos. As diferenças se mostram ínfimas a tal ponto de não serem suficientes para que um homem se sinta mais privilegiado do que o outro.

“Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.”[4]

Esta igualdade existente no estado de natureza traz conseqüências trágicas, pois de acordo com a argumentação do filósofo, a rivalidade inata dos homens, somada à consciência da igualdade das capacidades de cada um, leva a uma convicção de que existe também igualdade, para se obter um fim. Um homem é opaco aos olhos do outro, um não sabe o que o outro deseja e planeja e é razoável que se conclua que existe uma tensão. As suposições recíprocas sobre os anseios e possibilidades de cada homem forçam a uma conclusão lógica: o mais razoável é que cada um ataque o seu próximo, para vencê-lo ou para se prevenir de um possível ataque contrário.

Assim, a guerra se torna generalizada entre os homens e no estado de guerra fica evidente que, não existindo uma força repressora, é racional[5] que o homem ataque e se defenda. É necessário enfatizar esta análise do pensamento hobbesiano e entender que o estado de guerra entre os homens não é anormal. Os atos de ataque e defesa são os únicos racionais no estado de natureza. Percebe-se que o homem hobbesiano não é um selvagem, mas um ser racional.

Mais adiante, Hobbes argumenta que as Leis da Natureza, como por exemplo o desejo de paz e a garantia da liberdade, levarão os homens a formar um contrato.

Considera que o direito natural (mesmo igualando todos) é prejudicial aos homens, pois leva à guerra. A submissão ao direito civil será a garantia de paz. Dizer que no estado de natureza todos têm direito a tudo, significa dizer que ninguém tem direito a nada, pois não há como garantir esse direito.

Concluimos que Hobbes, ao assumir esta postura, não tinha dúvidas a respeito da positivação do direito e que este deveria tomar o lugar do direito natural, como garantia da sobrevivência do homem, preservando-lhe a vida (maior dom).

Ainda tecendo comentários acerca do comportamento humano no estado de natureza, Hobbes explicita que os homens sentem desgosto quando se reunem, na inexistência de algum poder que se imponha sobre eles. O valor que cada um dá para si (no plano individual) é o mesmo que espera que seus semelhantes lhe outorguem. Caso não consiga esta valorização o homem busca, pelo uso da força, alcançar, dos outros, esta estima.

São apontadas três causas existentes, na natureza humana, que promovem a discórdia: competência, desconfiança e glória.

“A competência impulsiona os homens a atacarem-se para lograr algum benefício; a desconfiança garante-lhes a segurança e a glória, a reputação”. [6]

A violência (competição) é a ferramenta usada pelo homem para conseguir, pela uso da força, apossar-se de pessoas e objetos, a seqüência da violência (desconfiança) é o uso da força para manter os bens auferidos. Ainda usa da força (glória) por motivos menores (como uma opinião divergente), caso se sinta subestimado, “de forma a macular a sua decência, seus amigos, sua nação, sua profissão ou nome de família”. [7]

Diante da ausência de um poder que possa inibir essas ações individuais humanas, pode-se afirmar que está instalado o estado de guerra. Guerra de todos contra todos. E é importante frisar que esta guerra não está adstrita à batalha ou ato de guerrear, mas estende-se ao período de tempo em que predomina a vontade de se insurgir. Esse é um tratamento de Hobbes, quanto à natureza da guerra: é mais que a luta é também a disposição para guerrear.

O que é sugerido da preponderância do pensamento hobbesiano quanto à guerra é que, desconsiderando para fins de entendimento a luta em si, é mister vislumbrar a disposição para o conflito. A vontade de guerrear é a força motivadora para o estado de guerra. O homem tende à guerra e precisa ser dominado por um agente artificial (Estado) e aí fica patente a necessidade da passagem para o estado civil.

(Discussão em análise: liberalismo (conteúdo/essência) e absolutismo (forma) – pontos em questionamento com orientador).

A descrição do homem, no estado de natureza, leva à conclusão lógica do pensamento do filósofo. A liberdade neste estado é prejudicial ao dom maior (vida). Aqui está o elo de conexão entre o estado de natureza e o estado civil. Este elo seria o medo da morte violenta conjugado com a esperança da paz?

Antes de considerar o medo e a esperança em Hobbes urge analisar o efeito desta concepção antes apontada. Hobbes tinha plena consciência de que a sua definição do homem haveria de chocar os seus leitores que se prendiam à definição aristotélica do homem como animal social. Para Aristóteles o homem, por natureza vive em sociedade e nela desenvolve as suas potencialidades. As pessoas que se respaldavam no pensamento clássico preferiam fechar os olhos à tensão que há na convivência com os demais homens. Hobbes destaca:

“Poderá parecer estranho a alguém que não tenha medido bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociados os homens, tornando-os capazes de se atacarem e destruirem uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência feita das paixões, que ela seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; quando vai dormir fecha as suas portas; mesmo quando está em casa tranca os seus cofres, embora saiba que existem leis e servidores públicos armados, prontos a vingar qualquer dano que possa lhe ser feito. Que opinião tem ele dos seus compatriotas, ao viajar armado; dos seus concidadãos, ao fechar as suas portas; e dos filhos e criados, quando tranca os seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com os seus atos como eu o faço com as minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que será impossível até o momento em que sejam feitas as leis, e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter concordado quanto à pessoa que deverá fazê-la.”

Hobbes conclama um novo exame e que os preconceitos arraigados e oriundos do pensamento aristotélico e da filosofia escolástica medieval sejam extirpados. A concepção de que o homem é um ser sociável por natureza impede a identificação do conflito e o seu combate efetivo. O pensador inglês insiste que é mister entender como o homem é de fato (sem ilusão). Com a ciência política será possível construir estados estáveis, caso contrário existirão sociedades instáveis e em permanente guerra civil.

Sem estabilidade existe o medo - que precisa ser considerado. Um estudo do capítulo XIII do Leviatã, aponta-o como uma presença constante no estado de guerra:

“Portanto, tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que o homem é inimigo de todo o homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção”. [8]

Hobbes, na seqüência desta ponderação aponta as mazelas promovidas pelo estado de guerra. O homem preocupado com sua própria defesa e sobrevivência não tem tempo nem disposição para desenvolver outras atividades necessárias à sua sobrevivência (plantar, colher, construir, navegar, etc). E completa: “... e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta.” [9]

Duas discussões emergem deste texto de Hobbes: a primeira é a de que o homem hobbesiano é medroso e esta paixão teria sido o agente criador do estado civil. O medo da morte violenta forçou o homem a criar um mecanismo de defesa, que é o homem artificial. Pensar somente desta forma, ao que tudo indica, é resultado de uma análise histórica da vida de Hobbes, em especial o contexto de seu nascimento e infância.[10] A segunda discussão não descarta o medo, mas agrega-lhe outra paixão, que é a esperança. “Mas não é possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem o contraponto da esperança.”[11] A esperança se manifesta na própria forma de expressão de Hobbes, que tem certeza da paz, vida e progresso no estado civil. A esperança de um estado de paz só existiria a partir do medo (no estado natural), do qual já se falou.

Outra discussão é derivada das duas anteriores: o homem de Hobbes, no estado de natureza, é solitário e miserável. Pois não lhe restando tempo para outra coisa a não ser guerrear ou estar pronto para a batalha, tem vida sórdita e curta.

É possível notar claramente no discurso de Hobbes sobre o estado natural, a proposição de uma premissa que explica e justifica o advento necessário do estado civil. É patente que o homem no estado de natureza não é um selvagem (irracional). Não tendo alternativas para se proteger (libertade total para todos – que são “... tão iguais...”), viu-se num estado permanente de guerra de todos contra todos. Como por fim à tensão que traz o medo? Como alcançar a paz (esperança)?.

Considerações em andamento, neste mesmo capítulo: Direito de Natureza (liberdade de cada um para usar seu próprio poder) e Lei de Natureza (preceito ou regra geral, estabelecido pela razão o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida (...))


3. Bibliografia


GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí: Unijuí, 2004.

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. 3ª. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. – (Clássicos).

_______________. Leviatã. 2ª. ed. – São Paulo: Ícone, 2000.

_______________. Os Elementos da Lei Natural e Política. – São Paulo: Ícone, 2002.

BERNARDES, Julio. Hobbes e a Liberdade. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

LIMONGI, Maria Isabel. Hobbes. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. – São Paulo: Martins Fones 1998. – (Clássicos).

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TUCK, Richard. Natural Rights Theories. – CUP. – 1979.

_____________. Hobbes. – São Paulo: Edições Loyola, 2001.

[1] Na metade do século XIX Sir Henry Maine, numa interpretação sociológica do direito, considerava impossível a existência de um pacto, antes da formação de uma sociedade. O contrato somente seria possível após longa experiência de vida social.
[2] Capítulo XIII, 1º parágrafo.
[3] É importante neste capítulo visualizar a igualdade sugerida por Hobbes sem a influência do pensamento moderno. O contexto deve ser adstrito apenas ao hipotético estado apresentado pelo filósofo.
[4] Capítulo XIII, 1º parágrafo.
[5] O senso de defesa no estado natural é evidência da racionalidade humana, da consciência de que não existe outra opção.
[6] Leviatã, Capítulo XIII, página 95
[7] Idem, página 96
[8] Leviatã, capítulo XIII, página 109.
[9] Idem.
[10] Nos idos de 1588 a Inglaterra (Nação protestante) aguardava a invasão espanhola. As cidades ribeirinhas espreitavam o desembarque daquela armada tida como invencível. Neste tempo de pânico Hobbes nasceu e ele mesmo reflexionou sobre isto, noventa anos depois, ao dizer que sua mãe teria parido gêmeos: ele (hobbes) e o medo.
[11] Renato Janine Ribeiro, em sem livro “Ao Leitor sem Medo”, página 23.

Um comentário:

Sabrina Noureddine disse...

Oi Enéas,
Excelente postagem!!! Como sempre.
Abs., Sabrina.

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