Há trinta anos o psicólogo americano Michael Shermer se dedica a combater superstições. Ele criou uma ONG, uma revista (Skeptic Magazine),
sites e programas de TV focados em promover o pensamento científico e
desmascarar charlatões. Shermer, que chega ao Brasil no fim deste mês
para uma série de palestras, é autor de quinze livros. O último, Cérebro e Crença,
foi lançado em português na semana passada. Nesta entrevista, publicada
na edição de VEJA desta semana, ele diz que a tendência a se iludir com
fantasias é própria do processo mental humano e defende o combate à
crendice em favor do progresso.
Por que as pessoas acreditam no inacreditável?
A evolução fez do cérebro uma espécie de máquina de reconhecimento de
padrões na natureza. Às vezes, esses padrões são reais, mas na maioria
dos casos são fruto da imaginação. Milhões de anos no passado, ao ouvir
um barulho vindo da mata, um hominídeo poderia supor que se tratava de
algo inofensivo, como o vento. Se estivesse errado, e fosse um predador,
correria o risco de ser devorado. Nosso ancestral poderia, por outro
lado, imaginar a presença de uma divindade perigosa no mato e se afastar
o mais rápido possível.
A segunda opção é a que a maioria adota. Imaginar o perigo e fugir
garante a sobrevivência, mas também a ignorância. Ir até o mato
verificar do que realmente se trata o barulho exige curiosidade e uma
batalha contra os instintos. É nessa categoria, a dos homens que não se
rendem a narrativas fictícias, que se encaixa o cientista. Os crentes
seguem a trilha inversa, a dos que se contentam com suposições
sobrenaturais. É um fenômeno que tem a ver com a química do cérebro: a
convicção de que o pensamento mágico é o que basta para a compreensão do
universo produz uma sensação de prazer. Ficamos felizes em imaginar que
seres místicos, sejam eles deuses ou extraterrestres, se preocupam e
cuidam de nós. Não nos sentimos sós.
Como se sabe que o cérebro é propenso a acreditar no fantástico?
A neurociência identifica padrões de ondas cerebrais distintos que nos
levam a criar crendices e a ter prazer na constatação de que temos
respostas às nossas dúvidas. Em situações extremas, como as enfrentadas
por quem está no limite da resistência física ou próximo à morte, o
cérebro reage com a redução da atividade na área responsável pela
consciência e o aumento em regiões ligadas à imaginação. Essa reação
natural está na origem das alucinações. Não há mistério nesse processo.
Os cientistas são capazes de produzir visões ou a sensação de
transcendência espiritual com o estímulo artificial de certas áreas do
cérebro.
O senhor foi um cristão evangélico ativo no esforço de atrair fiéis para sua igreja. Como se tornou um cético?
Somos mais abertos à religião na juventude e na velhice. Naturalmente,
no fim da vida é comum procurar por conceitos reconfortantes, ainda que
irreais. No meu caso, o apelo da crendice me atingiu na juventude, como
uma explicação fácil para tudo o que existe. A religião tem um apelo
social enorme. O ambiente alentador de uma comunidade ajuda a afastar as
dúvidas até daqueles que não acreditam plenamente no sobrenatural e nos
dogmas religiosos. Desvencilhei-me da crença ao entrar para a
comunidade científica. O método científico, cujo princípio básico é o de
que qualquer afirmação deve ser comprovada em experimentos repetidos,
alimenta o ceticismo e favorece o progresso.
O que faz com que a ciência seja a melhor ferramenta para explicar o mundo?
A ciência é democrática. Qualquer um pode estudar e chegar a conclusões
racionais. Cientistas estão abertos à possibilidade de estarem errados
e, por isso, promovem a invenção e a reinvenção de conceitos. É o que
garante o avanço do conhecimento. A crendice é intolerante. Fixa uma
verdade e não abre espaço para perguntas. Se nos apegássemos apenas ao
sobrenatural, nunca teríamos saído da floresta e criado a civilização.
No mundo moderno, ainda precisamos da crença?
É impossível deixar de crer. A ciência também depende da nossa
capacidade de elaborar crenças. Qualquer experimento nasce com uma
premissa baseada no que se acredita ser verdade. Ideologias também
precisam da habilidade de crer. Eu acredito no liberalismo, na
democracia e nos direitos humanos. Podemos, porém, abandonar o que não
pode ser explicado, como deuses e bruxos. Não nos faria falta.
Há vantagens na crença?
A evolução nos concedeu a habilidade de acreditar por boas razões. A
crença em divindades nos levou a temer o mundo e, com isso, nos ajudou a
sobreviver nele. Também contribuiu para a formulação de leis que regiam
comunidades primitivas. A moral e a ética nasceram na religião.
Se a ética tem origem religiosa, por que ela prevalece na sociedade laica?
As igrejas se tornaram um fator de corrupção, motivo de guerras e
perseguições. Por sorte, presenciamos o declínio da crença no
sobrenatural. Países do norte europeu, onde apenas um quarto da
população segue alguma religião, têm índices de criminalidade, suicídio e
doenças sexualmente transmissíveis inferiores aos de estados em que a
maioria dos habitantes é de crentes, como os Estados Unidos e o Brasil.
Se a religião se declara um bastião da bondade, por que, historicamente,
estados teocráticos são mais suscetíveis à criminalidade do que os
seculares?
Apesar de vivermos na era da ciência, cresce a crença no sobrenatural. Por quê?
É verdade que vivemos num mundo em que a ciência faz parte do dia a
dia. Todos gostam de iPhones e admiram as naves que pousam em Marte. Mas
poucos abdicam de crenças sobrenaturais e aceitam a ciência como
ferramenta para explicar o universo. A maioria só quer aproveitar os
produtos da ciência. Quando se trata de responder a dúvidas primordiais,
como a origem do universo ou o sentido da existência, preferem
explicações irreais, mas convincentes em suas narrativas fictícias.
Por que o senhor se dá ao trabalho de combater a superstição?
Sempre me perguntam por que não deixo os crentes em paz. Ocorre que a
crença no sobrenatural não é inócua. Ao contrário, é bastante perigosa.
Acreditar na dita medicina alternativa é um exemplo. Muita gente morre
por substituir o tratamento médico sério por procedimentos
supersticiosos, como o consumo de ervas com propriedades supostamente
milagrosas.
Não é possível provar a existência de divindades e criaturas
fantásticas. O senhor concorda que também é difícil provar que não
existam?
O fato de não explicarmos um mistério não significa que ele exija
explicações sobrenaturais. Só mostra que ainda não há resposta. O ônus
da prova cabe aos crentes. O cético só crê no que é provado. Nesse
aspecto, a ciência tem feito bom trabalho ao desmascarar mitos. No
passado, já se acreditou que a Terra viajava pelo cosmo no lombo de um
elefante. Existem 10.000 religiões. Espanta-me a arrogância de quem
supõe que só uma crença seja correta em meio a tantas.
O senhor leva em consideração que pode estar errado?
Assim como todos, só descobrirei a resposta quando morrer. Como
cientista, estou aberto à possibilidade de ter me enganado. Se houver um
ou vários deuses, ficarei surpreso. Mas não tenho medo. Se há um Deus,
ele me deu um cérebro para pensar. Meu pecado seria usá-lo para
raciocinar e buscar explicações? Um ser benevolente não me puniria por
utilizar bem as armas que me concedeu.
(Veja)
Um comentário:
Excelente!
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