Um milagre é "uma transgressão de uma lei da Natureza pela
vontade de uma Divindade, ou a interposição de um agente invisivel." (Hume, p.
123n) Teologos das religiões do Antigo e Novo Testamento consideram apenas Deus como
capaz de vencer as leis da Natureza e executar verdadeiros milagres. Contudo, admitem que
outros possam fazer coisas que desafiam as leis da natureza; tais actos são atribuidos a
poderes diabólicos e são chamados "falsos milagres". Muitos fora das
religiões baseadas na Biblia acreditam na possibilidade de transgredir as leis da
natureza através de actos de vontade em consonância com poderes ocultos ou paranormais.
Mas geralmente referem-se a estas transgressões não como milagres mas como mágicas.
Todas as religiões registam milagres. Como Hume notou, as
religiões estabeleceram-se sobre os seus milagres. Mas, se é assim, cancelam-se umas às
outras. Hume compara o decidir entre religiões com base nos seus milagres com a tarefa de
um juiz que deve avaliar testemunhos contraditórios mas igualmente fiáveis.
Mais esclarecedor é o facto de que quanto mais antigo e barbaro é
um povo, maior a tendência para milagres e prodígios florescerem..
Hume era um historiador, bem como filósofo, e não lhe passou
despercebido o facto que quanto mais recuamos na história, mais relatos temos de
milagres. E, apesar de haver muita gente hoje que acredita em milagres, mas é pouco
provável que qualquer historiador do século vinte encha os seus livros de relatos
miraculosos. É improvável que um único relato destes encontre lugar em tais livros.
Hume estava consciente de que independentemente de quão cientifica
ou racional uma civilização se tornasse, a crença em milagres nunca seria erradicada. A
natureza humana curva-se ante o maravilhoso. Vaidade e ilusão levaram a mais de uma
fraude piedosa suportando a causa sagrada e meritória com grandes embelezamentos e
mentiras acerca de feitos miraculosos. (Hume, p. 136)
O principal argumento de Hume contudo, foi modelado a partir da
argumentação feita por John Tillotson, que se tornou Arcebispo de Canterbury. Tillotson
e outros como William Chillingworth antes dele e o seu contemporâneo Bispo Edward
Stillingfleet argumentaram com o que chamaram uma defesa de "senso comum" do
Cristianismo, i.e., Anglicanismo. O argumento de Tillotson contra a doutrina Católica da
Transubstanciação ou "a real presença" era simple e directa. A ideia contradiz os sentidos de que o pão e o vinho usados nas cerimónias são mudados em
algo que é pão e vinho para os sentidos mas que realmente será o corpo e sangue de
Cristo. Se parece pão, cheira a pão, sabe a pão, então é pão. Desistir disto
é abdicar de todo o conhecimento baseado na experiência. Qualquer coisa pode ser outra
que não o que os sentidos mostram. Este argumento nada tem a ver com o argumento céptico
da incerteza do conhecimento dos sentidos. Isto é um argumento acerca da crença
razoável. Se os Catóticos tivessem razão acerca da consubstanciação, então um livro
podia ser um bispo. Os acidentes de uma coisa não dariam pistas para a sua substância.
Tudo o que vemos pode ser completamente não relacionado com o que parece ser. Tal mundo
não seria razoável. Se os sentidos não podem ser confiados num caso, não podem sê-lo
em caso nenhum. Acreditar na consubstanciação é abandonar a base de todo o
conhecimento: a experiência dos sentidos.
Hume começa o seu ensaio sobre milagres elogiando a argumentação
de Tillotson como sendo "tão conciso e elegante e forte como qualquer argumento o
pode ser contra uma doutrina tão pouco merecedora de uma refutação séria."
Continua afirmando que pensa ter "descoberto um argumento de tal natureza que, se certo, pode ser
um eterno verificar de todo o tipo de superstições, e consequentemente será util
enquanto o mundo durar; até ao fim, presumo, os relatos de milagres e profecias serão
encontrados na história, sagrada e profana". [Hume, p. 118]
O seu argumento é um paradigma de simplicidade e elegância: Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como
uma experiência firme e inalterável estabeleceu essas leis, a prova contra um milagre,
da própria natureza do facto, é tão inteira quanto qualquer argumento a partir da
experiência pode ser imaginado.[p. 122.]
Ou pondo ainda mais sucintamente:
Tem de... existir uma experiência uniforme contra qualquer
acontecimento miraculoso, pois de outro modo o acontecimento não mereceria aquela
apelação.[p. 122]
A implicação lógica deste argumento é que
nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre
a menos que aquele fosse de um tipo tal que a sua falsidade fosse ainda mais miraculosa
que o facto que tenta estabelecer. [p. 123]
O que Hume fez foi pegar no argumento anglicano so senso comum
contra a doutrina católica da consubstanciação e aplicá-lo aos milagres, base de todas
as seitas católicas. As leis da natureza não se estabeleceram por ocasionais ou
frequentes experiências similares, mas por uma experiência uniforme. É
"mais que provavel," diz Hume, que todos os homens morram, que o chumbo não
fique suspenso no ar, que o fogo consuma madeira e a água o extinga. Se alguém afirmar a
Hume que um homem consegur manter chumbo suspenso no ar por um acto de vontade, Hume
perguntar-se-ia se "a falsidade do testemunho é mais miraculoso que o facto que
relata." Se assim fôr, ele acredita no testemunho. Contudo, ele não acredita que um
milagre pudesse ser estabelecido com base nesta evidência.
Considere o facto de que a uniformidade da experiência das pessoas
em todo o mundo lhe diz que uma vez uma perna amputada, ela não volta a crescer. O que
pensaria se um seu amigo, um cientista de elevada integridade, lhe dissesse que quando
estava de férias em Espanha encontrou um homem que não tinha pernas mas agora caminha
com dois magnificos membros inferiores. Diz-lhe que um homem santo esfregou um óleo nos
tocos e as pernas cresceram. O homem vive numa pequena aldeia e todos os aldeões atestam
o "milagre." O seu amigo está convencido de que um milagre ocorreu. Em que é
que acredita? Acreditar neste milagre seria rejeitar o principio da uniformidade da
experiência, em que as leis da natureza se baseiam. Seria rejeitar uma assunção
fundamental de toda a ciência, de que as leis da natureza são invioláveis. O milagre
não pode ser aceite ser abandonar um principio básico do conhecimento empirico: que
coisas iguais em circunstâncias iguais produzem resultados iguais.
Claro que há outra constante que não devemos esquecer: a
tendência das pessoas em todos os tempos desejarem algo de maravilhoso, de se iludirem
com isso, de o fabricar, de o embelezar, e de acreditarem nas suas invenções com
paixão. Quer isto dizer que os milagres acontecem? Claro que não. Significa que quando
alguem relata um milagre a probabilidade de estar enganada, iludida ou a enganar é muito
superior à do milagre ter realmente acontecido. Acreditar num milagre, como dizia Hume,
não é um ato de razão mas de fé.