“Disse o insensato no seu coração: não há Deus.” Naturalmente, esta pouco misericordiosa denegação do homem como ser de razão, ou esta terrível ironia divina – como se tivesse adivinhado, como é do seu ofício, a futura ironia do meu amigo Saramago –, é posta no livro sagrado nos lábios mesmo de Deus. Apesar deste sarcasmo divino, os homens, na sua peripécia histórica, sempre disseram no seu coração – ou tiveram a tentação de o pensar –: “Não há Deus.”
Os mais peremptórios, em épocas que o permitiam, como no século XVIII e nos seguintes, assumiam essa negação de Deus chamando-se a si mesmos “ateus”. Na verdade, foram “os homens de Deus”, ou o mesmo Deus, como o texto bíblico o testemunha [Salmo 14 (13), 1; Salmo 53 (52), 1], que primeiro se separaram dos outros homens. Ou registaram a separação, marcando-a para séculos com um sinal de fogo.
O que designamos por “ateísmo”, na sua literal acepção, significa, geralmente, mais do que o seu conteúdo dialecticamente negativo. Denota um relacionamento de grau nulo com o referente Deus. É tão impensável ou inacessível na sua ordem como a pura transcendência, que é conteúdo real ou imaginário de Deus. Ser ateu é só ser e estar “sem Deus”. Perspectiva tão vertiginosa como a que a referência a Deus assinala, sob o modo de uma “ausência” tão impensável como a de Deus e não menos “abscôndita”, só que mais dolorosa, que a da presença das presenças. Ou, em termos de mera lógica humana, alguém que abdicou ou não encontra na ordem da existência, cósmica ou humana, qualquer razão ou motivo para lhe atribuir, na plenitude do termo, o que chamamos sentido e, muito menos, o Sentido de todos os sentidos.
Considerou-se ateu Espinoza porque, de maneira clara, assimilou Deus à Natureza, mas para outros, entre os quais Unamuno, passou por um “ébrio de Deus”. Tanto na tradição como na óptica moderna, considerou-se ateu e deve assim ser considerado o sujeito para quem “o nome” e, sob ele, a mesma ideia de Deus – não o seu conceito – não tem sentido algum. Embora, não sem pertinência, houvesse mais motivos para designar como “ateu” quem, precisamente, tivesse a pretensão de objectivar, ou de conceber claramente, o que ele mesmo chama Deus.
Nesse sentido, não haveria ateus mais perfeitos que os chamados teólogos, pelo menos os clássicos – anteriores a Karl Barth –, que sabiam tudo de Deus, ou que sabem tudo de Deus. José Saramago, autor de “Memorial do Convento” e do tão discutido – embora a meu ver não suficientemente discutido – “O Evangelho segundo Jesus Cristo”; proclamou-se simples e naturalmente ateu. Já veremos que, como Espinoza, é também unamunescamente, e à sua maneira, um “ébrio de Deus”. Quer dizer, uma das poucas criaturas que ainda se passeiam pelas ruas desertas deste mundo, que está solicitando de novo os anjos, como num filme de Wim Wenders, atento à interpretação que o estado do mundo, a memória do seu percurso, os enigmas da vida e os labirintos do desejo lhe provocam, decidido a converter toda a sua experiência em construções fabulosas para uso de uma Humanidade sem deuses nem Deus mas que só através delas se pode redimir.
O singular propósito de Saramago, o de inventar uma máquina de sonhos – de que o “Memorial...” pode ser o símbolo –, é a sua resposta a um mundo onde a imemorial utopia do Bem, nas suas versões antigas ou modernas, produziu frutos envenenados, o que deve ser refeito por uma espécie de nova Criação sem mais criador que a vontade humana, ou antes, a constelação mágica dessas vontades diversas actuando como se fossem uma só.
Para justificar esta nova leitura da aventura humana numa perspectiva ateísta não precisamos sequer de a filiar na longa história ocidental da contestação dos deuses ou de Deus que atravessa essa história como gesta da revelação cristã. E muito menos de a relacionar com a versão nietzschiana dessa contestação, tal como “O Anticristo” do autor de “Zaratrustra” autêntica e brutalmente a assumiu. Há no nosso mundo hispânico, ostensivamente crente, católico a “macha martillho”; como dizia Menéndez Pelayo, uma maneira de ser naturalmente ateia. Vejamos em que sentido.
Assim como Tertuliano dizia que a alma era “naturaliter christiana”, também a do autor do “Memorial...” ou de “A Segunda Vida de Francisco de Assis” e, sobretudo, do controverso “Evangelho...” é superlativamente ateia. Quer dizer, com um tal excesso que não só não esconde a ferida de onde nasce como um exorcismo como vive dela. A sua “cruzada contra Deus”, a espécie de western metafísico implacável em que a converteu, é filha de uma funda vivência, de uma humaníssima vulnerabilidade frente à universal e aterradora presença do Mal. Não tanto do chamado mal metafísico ou ôntico (se tal é possível), do mal como rosto humano. Não seria arriscado pensar que a manifestação desta presença – para além da sua vivência entre os outros – tenha adquirido a seus olhos a figura de um anti-Deus e, em seguida, de um não-Deus diante da ficção comum da Humanidade que chamamos História. Escrevo com maiúscula porque foi – parece-me – nesse espelho monstruoso e sublimado do nosso destino que os avatares do Mal adquiriram para ele esse estatuto mítico. Mas também porque no seu propósito de lutar contra as mais recorrentes formas do Mal – a injustiça, a prepotência, a opressão, a crueldade, o menosprezo da condição humana – foi na História como narrativa dos males, e sobretudo dos Males apresentados como Bens, que a sua imaginação banhou para inventar, através da sua revisitação, uma contra-História ou uma a-História. Aquela que é o palco onírico dos seus sonhos verdadeiros, os de Blimunda, de Bartolomeu, de Lídia, do mesmo Jesus de Nazaré.
José Saramago não foi o primeiro homem que leu esta história com assombro e com horror, como se fosse inventada – por um Hitchcock mais sádico do que o verdadeiro – para tirar o sono à Humanidade para sempre. Mas foi alguém que a leu como se fosse a primeira vez, que é assim que se lêem os livros que nos lêem. E então pensou e sentiu sem fim que Deus não se saía muito bem deste passo, remetendo para a culpa a responsabilidade dos males e do Mal para os sonhos dos homens, do Homem. Stendhal resolvera, em tempos, a questão por sua conta, mais lógica mas talvez menos profundamente, escrevendo que não se podia culpar Deus dos horrores de que a História está feita, porque não havia sujeito de culpa. Segundo ele, o Mal não tem sujeito por trás.
Saramago, mais sensível e português nisso, exigiu com todas as forças do seu coração e da sua vontade um Deus que assumisse os males que a narrativa bíblica imputa à desobediência humana e que um Deus bom devia ter impedido. Não são elucubrações teológicas as de Saramago – embora o autor do “Memorial...” seja um “teólogo” espontâneo –, mas apenas exigência existencial, resposta, se não grito de culpado inocente que inverte e subverte a essência do conto sagrado, substituindo-o por um conto puramente humano. Para isso, paradoxalmente, necessita daquele Deus em que não crê, como utopicamente se diz, mas em que crê superlativamente em termos de ficção, para dar sentido – e mesmo tornar possível – o processo de Deus como referente supremo da História. Quem pode separar o Deus da ficção da ficção de Deus?
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